Beirã actual - Mar'19 - Foto by José Coelho
Não
sou, nunca fui, de muitas “caramelices”. Para quem não conheça o nosso "falar marvanense", explico que “caramelices” quer dizer queixas. Uma pessoa “caramelosa”
é aquela que por tudo e por nada se queixa ou lamenta. Eu nunca fui assim.
Normalmente guardo para mim o que me “esfinza”- e que quer dizer apoquenta
– sem o exteriorizar.
Porém
e como para tudo há exceções, no dia que escrevi o meu último artigo e o partilhei
na minha página do Facebook, estava mesmo, mesmo, muito desanimado. Foi um dia
ruim. Não podia nem imaginar a catadupa de reações que o meu desabafo triste e
sincero iria desencadear em muitos dos meus familiares, amigas e amigos.
Nunca
tive dúvidas do quanto me estimam e fiquei grato, quase envergonhado, por ter
exteriorizado tão veementemente o meu estado de espírito naquele dia. Muito e
muito obrigado pela consideração e estima manifestados, os quais retribuo na
mesma medida. Entretanto a vida seguiu o seu percurso indiferente às minhas “caramelices”
e, um pouco mais animado, cá estou outra vez.
Como
que para me lembrar o muito que já por aqui escrevi, encontrei, por mero acaso,
não só todas as imagens – 12.125 – que publiquei no meu anterior e já extinto blogue Tocadoscoelhos,
assim como também um ou outro artigo nele publicado, um dos quais vou agora
republicar para vos mostrar como a minha paixão por esta terra e consequente amargura
pelo rumo que tomou, já vêm de longe.
Ora
(re)leiam:
Com
o fim do comboio regional de passageiros no Ramal de Cáceres, anunciado para
daqui a poucos dias, encerra também o melhor capítulo da vida de muita gente.
Vou, a título de mero exemplo, cingir-me ao que a mim diz respeito, porque
nasci a ouvir o silvo agudo e rouco daquelas então velhas máquinas negras
fumarentas de grandes rodas e manivelas gigantescas movidas a vapor, que, ao
chegarem muitas vezes à estação, enchiam o ar de um nevoeiro quente e húmido
que se estendia por toda a parte baixa da aldeia quando tinham que descarregar
o excesso de pressão que acumulavam no percurso.
A
minha casa fica num alto sobranceiro à Estação, a qual posso ver das janelas
das traseiras ou do quintal, de dia ou de noite, porquanto, os holofotes que
iluminam todo o seu perímetro, rasgam a escuridão e reflectem a sua poderosa
luminosidade por toda a colina até ao depósito abastecedor de águas da
povoação, além bem no alto. Mas não só. Toda a minha vida é um mar de boas
recordações. Mal sai da estação de Valência de Alcântara no país vizinho, alguns
quilómetros mais à frente assoma a via férrea ao alto do Sesmo. E logo o
potente rugido das máquinas se anuncia ao longe, fazendo-se ouvir no meu
quarto, desde que me lembro de ser gente.
Do
outro lado da nossa casa, a oriente, onde se situa um outro quarto que sempre
foi o dos meus pais, era comum ouvi-los comentar:
-
Vai haver mudança de tempo. Esta noite ouvia-se o comboio logo assim que vinha
à curva da Atalaia!
Também
a casa dos meus avós maternos se situava junto à passagem de nível da
Cavalinha, nas traseiras da Caseta dos Assentadores cujas esposas eram as
guardas que tinham por missão fechar e abrir as cancelas para passagem segura
das inúmeras composições de mercadorias ou de passageiros que circulavam durante
todo o dia e noite.
Menino
de tenra idade, entregava-me a minha mãe algumas vezes ao cuidado do meu avô Zé
Lourenço, para ela poder ir com a minha avó Amélia sachar milho, ou outros
trabalhos à jorna, próprios das mulheres do campo desse tempo. E lá andava eu
todo o dia com ele, por aquelas tapadas de um e do outro lado da linha a ver os
comboios passar enquanto o avô guardava as ovelhas, a saltar de pedra em pedra,
a ouvir “as meninas a cantar” que ele dizia ser aquele zumbido cacofónico que
se percebia ao encostarmos o ouvido aos postes dos fios telefónicos existentes
ao longo da linha férrea.
E
depois…
Bem…
Depois, a ida a Évora por comboio, quando, aos 17 anos de idade e por me ter
oferecido voluntário para a tropa, fui chamado à inspeção militar ao hoje
extinto RI16 na Cidade-museu, numa viagem de várias horas e outros tantos
transbordos, o primeiro dos quais na Torre das Vargens para a estação de
Portalegre e ali de novo para Estremoz e Évora.
Foi
uma aventura e tanto. Depois, ao longo de muitas décadas, as confortáveis
viagens com o comboio sempre aqui à porta, a levar-me na ida ou a trazer-me na
volta. Elvas como recruta, Lisboa como especialista, Estremoz novamente já
mobilizado para Angola, Santa Margarida a aguardar embarque para a guerra, e,
finalmente, para me devolver à Beirã e à minha gente são e salvo, 37 longos
meses depois.
Consequência
de muitas injustiças de que fui alvo, foi o comboio que me levou em 1975 para a
Beira Baixa, via Abrantes, Castelo Branco e Fundão, com destino às Minas da
Panasqueira. Aqui tive sempre o mesmo transporte seguro e pronto quase à porta.
Para qualquer parte do país e pelo Ramal de Cáceres que sempre dispôs de
excelentes acessos para muitos e diversificados destinos, bastando para isso
aceder à Torre das Vargens, a Abrantes, ao Entroncamento ou a Lisboa. De manhã
à noite, eram várias as opções de escolha nos horários de partida ou de chegada
e dias havia que a partir da estação de Castelo de Vide já não havia lugares
sentados vagos, pelo que se tinha que viajar de pé nas coxias e corredores das
carruagens.
Mais
tarde, quando, em função das minhas pretensões de ascender na carreira
profissional, uma vez mais durante três longos e consecutivos anos, viajei no
comboio para a capital onde frequentei os respetivos cursos de promoção no Alto
da Ajuda, rumando depois a São João da Madeira e ao Porto como estagiário,
sempre com a excelente comodidade de poder viajar de comboio todas as semanas,
para onde quer que necessitava deslocar-me.
E
como eu, milhares de passageiros de toda esta região. É inacreditável que hoje,
passadas pouco mais de duas décadas, isto esteja a acontecer. Suprimir o
serviço regional de passageiros no Ramal de Cáceres é, por outras palavras,
encerrar este serviço público definitivamente.
Não
tenhamos ilusões.
Restará,
daqui nem diante, o Lusitânia Comboio-Hotel que utilizará este percurso duas
vezes ao dia – ou à noite – entre Lisboa e Madrid e vice-versa. Até quando?
Todos
nós sabemos. Mal se inaugure o tão badalado TGV, o Lusitânia deixará de ser
necessário. E o Ramal de Cáceres encher-se-á de silvas e mato em todo o seu
percurso, as suas lindíssimas Estações definharão até cairem e a memória de um
povo que esteve ligado a tudo isto durante quase um século e meio, desaparecerá
inexoravelmente na bruma do tempo. É verdade que neste momento talvez não seja
rentável. Mas porquê? Serão os serviços oferecidos pela CP eficientes?
E
se, em vez de suprimirem este serviço regional de passageiros para suprimirem
eventuais prejuízos, porque não suprimir um ou dois lugares na Administração da
CP com os seus chorudos ordenadões, mais os carros topo de gama com motorista e
um nunca mais acabar de mordomias que, isso sim, é o que verdadeiramente causa
prejuízos às empresas?
Vendo
as coisas por outro prisma ainda, não pagam as populações desta esquecida zona
do nosso país os seus impostos como todos os outros? Então, porque têm que os
Marvanenses, os Castelovidenses, os Cratenses ou os Nisenses, contribuir com as
suas divisas para pagarem auto-estradas que não atravessam os seus concelhos,
pontes sobre Tejo, Douro ou Guadiana que pouco ou nada usam, e muitas outras
merdas megalómanas que servem só para quem lá vive perto, mas não há a porra de
uns míseros euros para manter o catano de uma automotora que sirva nem que seja
só a minha vizinha Júlia que tem a sua filha e os seus netos no Entrocamento, é
viúva, já entradota na idade e não tem outra forma de se deslocar?
Ou
será que...
Os
habitantes destes municípios NÃO SÃO PORTUGUESES como aqueles do litoral ou das
grandes metrópoles onde se faz tudo e mais alguma coisa nem que para isso os
governos tenham que se endividar até aos olhos?
Ou
ainda que...
Nós
por cá só somos cidadãos como os outros, quando é preciso encher-lhes o cu de
votos?
José
Coelho
Resta
por hoje acrescentar que já não existe Lusitânia já não existe sequer Ramal de
Cáceres e que a minha Beirã está, a cada dia que passa, mais despida de gente,
crescendo, por isso mesmo, em cada rua do velho burgo, o número de casas fechadas.
José
Coelho
Dia
do Pai'19