segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Democracia não é matéria de aprendizes...

Imagem copiada do Google


Regressei à Beirã vindo da guerra no dia 8 de Junho de 1974 quase em vésperas dos santos populares e das fogueiras de rosmaninho que cada família fazia à sua porta para o alegre convívio de umas sardinhadas à mistura com uns pezitos de dança animados por músicas de gira-discos ou gravadores de cassetes.

Era tudo o que eu mais necessitava para matar as saudades de tão longa e sofrida ausência, esquecer os tão maus bocados vividos e reencontrar a harmonia interior na paz abençoada da família e da aldeia que muitas vezes temera não voltar a ver. A Beirã desse tempo tinha um grande grupo de jovens e era uma comunidade muito viva, atuante e participativa.

Aos serões, a malta de ambos os sexos juntava-se em grupos por aí. No Clube, na Sociedade, no Largo da Fonte, à porta da Loja Grande. Havia quem tivesse uma viola, havia até quem cantasse muito bem, havia, enfim, um estilo de vida completamente salutar e diferente do atual em que a amizade, a camaradagem e o espírito de grupo imperavam, dando origem a uma juventude unida, equilibrada e muito, muito feliz.

Quase ninguém tinha ainda televisão em casa. Qualquer programa de maior interesse era visionado pela população nas salas públicas acima referidas que tinham esse dispositivo para a utilização coletiva de quem o quisesse usufruir, o que, de algum modo, contribuía também muito para a juventude reunir e conviver quase diariamente.

Mas os ecos da recente revolução de abril foram, entretanto, cá chegando, mais ou menos ruidosos. E começaram, infelizmente, as tendências negativas do partidarismo, que, por sua vez, começou a dividir em claques os simpatizantes de cada partido. E muitos amigos de uma vida inteira começaram a olhar-se de lado como se de súbito se tivessem tornado inimigos.

Começou ali a nova era que, em meu modesto entender e como muito tenho escrito, não trouxe, nem pouco mais ou menos, tudo aquilo que se perspetivava e se prometeu, quer em termos de futuro, quer em termos de riqueza ou de bem-estar coletivos. Muito e muito pelo contrário. Por cá, a Beirã, a menina dos olhos do concelho de Marvão, iniciou, por essa altura, o seu processo de decadência imparável e irreversível.

Os primeiros excomungados da comunidade foram os agentes da PIDE/DGS com as suas famílias. Vizinhos e amigos nossos, independentemente daquilo que os ligasse ao anterior regime e ao que faziam no exercício da sua profissão, eram habitantes iguais a todos os outros e com os quais convivíamos em paz, em harmonia, e de quem não tínhamos qualquer razão ou motivo de queixa. Muito pelo contrário.

Depois… Bem, depois, foi o processo de integração de Portugal na União Europeia. Com a fronteira livre, a alfândega fechou, a circulação ferroviária reduziu de tal modo que mais de dois terços dos funcionários da CP foram colocados noutras estações longe daqui. Os escritórios dos despachantes oficiais também deixaram de ser necessários e a sombra do desemprego começou a pairar sem deixar lugar a dúvidas sobre muitas e boas famílias beiranenses que ali tinham garantido o seu ganha-pão há décadas.

Alguns que não eram de cá foram simplesmente embora para as suas terras de origem em busca das suas raízes para tentarem reconstruir as vidas desfeitas. Logo a seguir foi extinta também a guarda-fiscal. Golpe sobre golpe. E a Beirã entrou numa lenta agonia. Quem nos havia de dizer, a todos nós, os que continuamos ainda teimosamente por cá agarrados aos canchos, às giestas e aos velhos sobreirais, tão enraizados dentro de nós como o nosso próprio sangue, que iríamos assistir assim impotentes ao definhar lento e imparável da nossa amada aldeia.

Mas não foram só os funcionários da estação que foram “expulsos” pelo “progresso” da revolucionária mudança na política nacional. Antes dessa sangria humana que levou consigo quase toda a vida da aldeia, devo ter sido eu também um dos primeiros beiranenses a ter que “emigrar” para outras paragens, porque a oferta de trabalho, mesmo na agricultura, começou por aqui a escassear bastante. Mas não só. Outros perversos motivos me “empurraram” de cá para fora. Motivos que muito me magoaram e desiludiram, mas que, ao mesmo tempo, muito me ensinaram também acerca da imprevisibilidade da índole humana, até de quem julgamos conhecer bem.

Eu apenas queria constituir a minha família, casar e assentar de vez. Mas precisava primeiro, para isso, de um emprego fixo, conforme vinha idealizando desde muito novo, sendo esse o principal motivo que me levara a oferecer-me voluntário para a tropa apesar de plenamente consciente também que seria quase certo ir ser mobilizado logo a seguir para a guerra a comer o pão que o diabo amassou e ainda com forte possibilidade de lá deixar ficar a pele. Mas, com a graça de Deus, coragem, força e determinação, nunca me faltaram. Nem as lágrimas da minha então aflita mãe me demoveram.

Voltando ao que vinha escrevendo antes do último parágrafo, tive que inesperadamente “emigrar à força” e ir embora para as Minas da Panasqueira, no coração da Beira Baixa, onde permaneci nos cinco anos seguintes até 1979, o ano em que ingressei definitivamente nas forças de segurança. E a principal causa da minha necessidade de partir para tão longe à procura de trabalho não foi, como já escrevi, apenas a falta de oferta de emprego por estas bandas. Foi também e sobretudo o tal partidarismo analfabeto e vesgo que se transformou em fanatismo puro e duro para muito boa gente, pessoas que até ali considerava excelentes amizades de toda a vida, mas que não toleravam o meu livre e democrático direito de optar por “cores” diferentes das suas.

Cedo percebi por isso que os cravos de abril nos libertaram de facto da velha e caduca ditadura do estado novo, mas, paralelamente, para muitos democratas-aprendizes e sem qualquer formação, em aldeias como a minha, no Portugal profundo, quem não militasse na sua “cor” partidária é porque era contra. Logo, um potencial alvo a abater, fosse de que maneira fosse. Democratas tão inteligentes e bem formados que, sem se darem conta, estavam a praticar exatamente e na íntegra a odiosa política totalitária de Salazar e do lema fasciszoide do “quem não é por mim, é contra mim”.

Sofri bastante com tudo isso àquela época, confesso. Nunca desejei mal nenhum a quem tentou por diversas formas, algumas delas bem sujas e cobardes, fazer-mo a mim. A vida encarregou-se de colocar todas as coisas no seu devido lugar. E eu fui compensado com o privilégio sem tamanho de conhecer e conviver com a gente boa da Beira, de trabalhar cinco belíssimos anos ao lado de íntegros e generosos beirões que tudo quanto levavam para o seu almoço repartiam comigo no fundo da mina. Com eles aprendi o inexplicável valor da solidariedade e da verdadeira amizade, aquela que só os mais nobres corações sabem oferecer sem nada esperarem em troca.

Ah e aprendi também a ser grato na mais bela linguagem beirã. Bem hajam…


José Coelho in Histórias do Cota