O aprendiz de xico-esperto
Tinha nove anitos. Era por isso já meio frangote e algo sabido – ou julgava que era – quando certa tarde a professora da Escola Primária Masculina da Beirã, a D. Clarisse Quezada me chamou, para me mandar ir à Virgínia da loja da ti Zabel no Largo da Fonte, com uma nota de 50 escudos, para a trocar por pesetas.
Era vulgar naquela época as senhoras mais abastadas da Beirã irem às compras a Valência de Alcântara bastando para tanto pedirem autorização verbal ao senhor doutor da alfândega que por norma não se opunha, e, de seguida, apanharem um dos muitos comboios que nesse tempo circulavam pelo Ramal de Cáceres de dia e de noite, numa ida e volta constantes entre as estações dos dois países irmãos.
E lá fui eu contente e todo lampeiro
fazer o recado. A Virgínia – muita gente se deve ainda lembrar – a criada
da ti Zabel que nos atendia ao balcão da loja, fez as contas ao câmbio e trocou a nota de 50 escudos portugueses por notas e moedas de pesetas
espanholas que me entregou.
Nessa época um escudo valia mais
ou menos duas pesetas “grosso modo”. Assim sendo e segundo o meu iluminado raciocínio,
deveria ter recebido em troca, 100 pesetas. Porém e porque o câmbio sem que eu
disso soubesse estava uns pózitos mais favorável ao escudo, a Virgínia deu-me
105 pesetas e não as 100 que eu havia calculado.
- Enganou-se! Pensei eu. Ora! Ainda
bem…
E sem pensar duas vezes meti ao
bolso as cinco pesetas que julgava serem em excesso por engano da Virgínia e
entreguei à D. Júlia, a criada da D. Clarisse que entretanto foi quem veio
atender-me quando bati de novo à porta, apenas as outras 100 pesetas redondinhas. Não
imaginava eu, xico-esperto de meia tijela, que a transação estava corretíssima
porque a peseta tinha desvalorizado mais umas décimas e por isso o câmbio dava a
quantia que me fora entregue.
Vendo tão poucas vezes a cor do
dinheiro e com umas preciosas cinco pesetas no bolso senti-me um milionário.
Corri à taberna do ti Rascalho onde comprei um pacote de tremoços, e, como
ainda sobraram umas perras-chicas daquelas que tinham um buraco no meio, passei de
caminho pela loja do ti João Batista porque dava para comprar ainda uma gasosa. Em seguida,
não fosse algum amigo aparecer de improviso e eu ter que dividir com ele o meu
inesperado “banquete”, marchei sozinho para as acácias do cancho da cegonha no
penedo da rainha e ali me deliciei com as tão apetecidas iguarias.
Quando ao fim de uma hora de lá vim, qual não foi o meu espanto ao ver que o meu pai, coisa
inédita, andava á minha procura! A D. Clarisse, sabendo a como estava o câmbio
da moeda, mal a criada lhe entregou as 100 pesetas, logo terá logo exclamado: “Isto
está mal”… E mandou a criada à loja da Virgínia reclamar. Como é lógico, a
Virgínia, pessoa séria e de muito boas contas, explicou que tinha entregue ao
portador 105 e não apenas as 100 pesetas! E, sem grandes dificuldades, concluiram
o resto.
O meu pai, para mal dos meus
pecados nesse dia, estaria já entretanto, na taberna ao lado da mercearia da ti Zabel e
logo ali foi informado da minha xicoespertice. Escusado seria dizer que, no
momento seguinte, andava ele á minha procura para me obrigar a devolver o que
eu tinha roubado e também para me “untar o faval” coisa que até esse dia nunca
tinha acontecido.
É verdade! Foi a única sova que o
meu pai me deu, que eu me lembre.
E como eu a mereci!
Assim que me viu aparecer ainda a
lamber os beiços dos tremoços com gasosa, chamou-me e vociferou furibundo: - Anda comigo lá a casa que temos que ir
fazer umas contas…
- Mau, maria… Pensei eu!
Nunca o tinha visto tão zangado!
Mas logo comecei a cogitar como me havia de safar, e, antes de chegar à porta
da nossa casa, larguei a correr dizendo-lhe:
- Vou à frente pai, para ir ver
de um lápis, para lhe fazer as suas contas…
Xico-esperto de novo hein?!...
Mas… Não me valeu a esperteza!
O meu pai deu duas ou três
grandes passadas entrou logo atrás de mim e antes de eu poder fazer mais
qualquer coisa, agarrou-me pela blusa e jogou-me um chapadão tão grande que fui
arremessado contra a parede do corredor. Ainda não me tinha sequer refeito da
surpresa e… Bumba! Outro valente chapadão com aquela mão calejada que mais
parecia uma tábua. E os meus ouvidos a zunirem que pareciam duas campainhas… Tziiiiiiiiiing!
- Caraças que isto doeu…
Como em toda a minha ainda curta
vida e até àquele preciso momento nunca o meu pai me tinha tocado nem com um só
dedo – nem nunca mais tocou no resto da sua vida – fiquei deveras acagaçado e
só talvez ali é que comecei a perceber que tinha metido a pata na poça e até ao
joelho…
- Seu cabrão! Vociferava ele com
os dentes cerrados, completamente danado! Nesta casa somos pobres mas nunca cá
houve gatunos… Onde é que estão as pesetas que roubaste à professora?
- Ai agora! Pensei eu, ainda mais apavorado!
E lá tive que explicar-lhe como
as tinha gasto e que por isso já não as poderia devolver.
- Muito bem – respondeu ele – eu
vou à Virgínia comprar as cinco pesetas mas quem as vai levar à professora na
minha frente e pedir-lhe desculpa, és tu. E é agora mesmo!
Dito e feito, lá tive que ir
então atrás do ti Antónho Coelho, de rabinho entre as pernas envergonhadíssimo
e sem saber como encarar a professora, que, como vocês todos se devem ainda
lembrar, não era nada dada a meiguices e tinha também umas mãozinhas
muito lampeiras. E eu bem sabia, pois muitas vezes as tinha já experimentado!
- Vou papá-las dela tamém... Pensei, com mau agoiro.
Porém, enganei-me. A professora,
talvez pela presença do meu pai, não me tocou e apenas me disse muito
carrancuda: - Fizeste uma coisa muito feia José Manuel e eu agora já não quero
as cinco pesetas. Mas vais entregá-las no próximo domingo na missa ao senhor
padre no cesto das esmolas à frente de toda a gente para toda a Beirã ficar a
saber o que tu fizeste…
- Jesus credo, “amalssoadas”
pesetas… Pensei em pânico.
Mas assim teve mesmo que ser. Foi
cá um destes vexames… O maior – e felizmente o único – em toda a minha vida.
Mas foi também, disso tenho
absoluta certeza, a melhor e mais dura lição que recebi. Nunca mais, mas mesmo
nunca mais, tive tentações de repetir tal esperteza.
Era assim que naquele tempo
educavam a gente. E que eficácia tinha!
Coitado do meu pai que todo o
resto da sua vida teve pena e algumas vezes chorou por me ter dado aquelas
“orelhadas”. Vezes sem conta se culpou
por me ter agredido daquela maneira pois ele não era mesmo nada dado a
violências – quem o conheceu sabe que ele era a bondade em pessoa – e incapaz de
ser agressivo fosse com quem fosse e pelo quer que fosse, muito menos com os
filhos que adorava.
Mas eu reconheço até hoje do
fundo do coração que me faziam falta e me fizeram muitíssimo bem. Se pudesse falar com ele, dir-lhe-ia
carinhosamente:
- Obrigado por m’as teres dado querido pai! Aquelas tuas valentes “lambadas” foram para mim uma vacina contra a desonestidade de tal modo eficaz que o seu
efeito foi vitalício. Nunca mais perdeu a validade...
José Coelho in Histórias do Cota