quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Coisas q'escrevi...



O aprendiz de xico-esperto


Tinha nove anitos. Era por isso já meio frangote e algo sabido – ou julgava que era – quando certa tarde a professora da Escola Primária Masculina da Beirã, a D. Clarisse Quezada me chamou, para me mandar ir à Virgínia da loja da ti Zabel no Largo da Fonte, com uma nota de 50 escudos, para a trocar por pesetas. 


Era vulgar naquela época as senhoras mais abastadas da Beirã irem às compras a Valência de Alcântara bastando para tanto pedirem autorização verbal ao senhor doutor da alfândega que por norma não se opunha, e, de seguida, apanharem um dos muitos comboios que nesse tempo circulavam pelo Ramal de Cáceres de dia e de noite, numa ida e volta constantes entre as estações dos dois países irmãos.

E lá fui eu contente e todo lampeiro fazer o recado. A Virgínia – muita gente se deve ainda lembrar – a criada da ti Zabel que nos atendia ao balcão da loja, fez as contas ao câmbio e trocou a nota de 50 escudos portugueses por notas e moedas de pesetas espanholas que me entregou.

Nessa época um escudo valia mais ou menos duas pesetas “grosso modo”. Assim sendo e segundo o meu iluminado raciocínio, deveria ter recebido em troca, 100 pesetas. Porém e porque o câmbio sem que eu disso soubesse estava uns pózitos mais favorável ao escudo, a Virgínia deu-me 105 pesetas e não as 100 que eu havia calculado.

- Enganou-se! Pensei eu. Ora! Ainda bem…

E sem pensar duas vezes meti ao bolso as cinco pesetas que julgava serem em excesso por engano da Virgínia e entreguei à D. Júlia, a criada da D. Clarisse que entretanto foi quem veio atender-me quando bati de novo à porta, apenas as outras 100 pesetas redondinhas. Não imaginava eu, xico-esperto de meia tijela, que a transação estava corretíssima porque a peseta tinha desvalorizado mais umas décimas e por isso o câmbio dava a quantia que me fora entregue.

Vendo tão poucas vezes a cor do dinheiro e com umas preciosas cinco pesetas no bolso senti-me um milionário. Corri à taberna do ti Rascalho onde comprei um pacote de tremoços, e, como ainda sobraram umas perras-chicas daquelas que tinham um buraco no meio, passei de caminho pela loja do ti João Batista porque dava para comprar ainda uma gasosa. Em seguida, não fosse algum amigo aparecer de improviso e eu ter que dividir com ele o meu inesperado “banquete”, marchei sozinho para as acácias do cancho da cegonha no penedo da rainha e ali me deliciei com as tão apetecidas iguarias.

Quando ao fim de uma hora de lá vim, qual não foi o meu espanto ao ver que o meu pai, coisa inédita, andava á minha procura! A D. Clarisse, sabendo a como estava o câmbio da moeda, mal a criada lhe entregou as 100 pesetas, logo terá logo exclamado: “Isto está mal”… E mandou a criada à loja da Virgínia reclamar. Como é lógico, a Virgínia, pessoa séria e de muito boas contas, explicou que tinha entregue ao portador 105 e não apenas as 100 pesetas! E, sem grandes dificuldades, concluiram o resto.

O meu pai, para mal dos meus pecados nesse dia, estaria já entretanto, na taberna ao lado da mercearia da ti Zabel e logo ali foi informado da minha xicoespertice. Escusado seria dizer que, no momento seguinte, andava ele á minha procura para me obrigar a devolver o que eu tinha roubado e também para me “untar o faval” coisa que até esse dia nunca tinha acontecido.

É verdade! Foi a única sova que o meu pai me deu, que eu me lembre.

E como eu a mereci!

Assim que me viu aparecer ainda a lamber os beiços dos tremoços com gasosa, chamou-me e vociferou furibundo:  - Anda comigo lá a casa que temos que ir fazer umas contas…
- Mau, maria… Pensei eu!
Nunca o tinha visto tão zangado! Mas logo comecei a cogitar como me havia de safar, e, antes de chegar à porta da nossa casa, larguei a correr dizendo-lhe:

- Vou à frente pai, para ir ver de um lápis, para lhe fazer as suas contas…

Xico-esperto de novo hein?!...

Mas… Não me valeu a esperteza!

O meu pai deu duas ou três grandes passadas entrou logo atrás de mim e antes de eu poder fazer mais qualquer coisa, agarrou-me pela blusa e jogou-me um chapadão tão grande que fui arremessado contra a parede do corredor. Ainda não me tinha sequer refeito da surpresa e… Bumba! Outro valente chapadão com aquela mão calejada que mais parecia uma tábua. E os meus ouvidos a zunirem que pareciam duas campainhas… Tziiiiiiiiiing!

- Caraças que isto doeu…

Como em toda a minha ainda curta vida e até àquele preciso momento nunca o meu pai me tinha tocado nem com um só dedo – nem nunca mais tocou no resto da sua vida – fiquei deveras acagaçado e só talvez ali é que comecei a perceber que tinha metido a pata na poça e até ao joelho…

- Seu cabrão! Vociferava ele com os dentes cerrados, completamente danado! Nesta casa somos pobres mas nunca cá houve gatunos… Onde é que estão as pesetas que roubaste à professora?

- Ai agora!  Pensei eu, ainda mais apavorado!
E lá tive que explicar-lhe como as tinha gasto e que por isso já não as poderia devolver.

- Muito bem – respondeu ele – eu vou à Virgínia comprar as cinco pesetas mas quem as vai levar à professora na minha frente e pedir-lhe desculpa, és tu. E é agora mesmo!

Dito e feito, lá tive que ir então atrás do ti Antónho Coelho, de rabinho entre as pernas envergonhadíssimo e sem saber como encarar a professora, que, como vocês todos se devem ainda lembrar, não era nada dada a meiguices e tinha também umas mãozinhas muito lampeiras. E eu bem sabia, pois muitas vezes as tinha já experimentado!

- Vou papá-las dela tamém... Pensei, com mau agoiro.

Porém, enganei-me. A professora, talvez pela presença do meu pai, não me tocou e apenas me disse muito carrancuda: - Fizeste uma coisa muito feia José Manuel e eu agora já não quero as cinco pesetas. Mas vais entregá-las no próximo domingo na missa ao senhor padre no cesto das esmolas à frente de toda a gente para toda a Beirã ficar a saber o que tu fizeste…

- Jesus credo, “amalssoadas” pesetas… Pensei em pânico.

Mas assim teve mesmo que ser. Foi cá um destes vexames… O maior – e  felizmente o único – em toda a minha vida.

Mas foi também, disso tenho absoluta certeza, a melhor e mais dura lição que recebi. Nunca mais, mas mesmo nunca mais, tive tentações de repetir tal esperteza.

Era assim que naquele tempo educavam a gente. E que eficácia tinha!
Coitado do meu pai que todo o resto da sua vida teve pena e algumas vezes chorou por me ter dado aquelas “orelhadas”.  Vezes sem conta se culpou por me ter agredido daquela maneira pois ele não era mesmo nada dado a violências – quem o conheceu sabe que ele era a bondade em pessoa – e incapaz de ser agressivo fosse com quem fosse e pelo quer que fosse, muito menos com os filhos que adorava.

Mas eu reconheço até hoje do fundo do coração que me faziam falta e me fizeram muitíssimo bem. Se pudesse falar com ele, dir-lhe-ia carinhosamente:

- Obrigado por m’as teres dado querido pai! Aquelas tuas valentes “lambadas” foram para mim uma vacina contra a desonestidade de tal modo eficaz que o seu efeito foi vitalício. Nunca mais perdeu a validade...




José Coelho in Histórias do Cota