Fotomontagem José Coelho
Sei que o tempo não volta. Oh como sei. Outra coisa eu não soubesse! E sim, corre agora em velocidade de cruzeiro quando eu queria que ele avançasse um pouco mais devagar. Longe vai o tempo em que ele me parecia uma eternidade. Porque nunca mais era sábado para ir outra vez ao baile na Sociedade Recreativa, ou domingo para ir namorar. As semanas já tinham sete dias mas parecia terem catorze. Os dias também já tinham vinte e quatro horas mas parecia terem trinta e seis. E os meses, esses, tinham para aí oitenta dias. Ainda assim as pessoas eram invariavelmente felizes e bem-dispostas. Quase sempre. E eu também.
Do Natal até à Páscoa demorava uma eternidade. Os Invernos duravam uns longos seis meses, desde Outubro até Março quase sempre a chover e frios de rachar. Os Verões tinham apenas três: Junho, Julho e Agosto. Os outros três, Abril Maio e Setembro, eram de tempo ameno sem ser inverno nem verão, sem estar frio mas também sem estar calor. E toda a gente percebia os sinais dos astros. Das estrelas, do sol, da lua. Aos cinco ou seis anos já eu conhecia a estrela boieira ou da manhã, aquela que há milénios indica que o dia está prestes a romper a escuridão da noite, pois muitas vezes o romper da aurora nos surpreendia, já de mão dada, a mim e à minha mãe, a caminho das tapadas onde ela ia sachar milho ou feijão preto de sol a sol.
O astro avermelhado ao fim do dia no verão anunciava que o seguinte seria ainda mais quente. E no inverno, a cor rosada no céu poente, dava como certo um dia seguinte gélido. A lua e os seus quartos também tinham segredos. O minguante era o adequado para as sementeiras, o crescente o de fazer crescer e amadurecer os frutos, mas também de fazer crescer a boa sorte ou as dificuldades em que as pessoas se encontrassem naquele quarto de lua. Por sua vez a lua cheia, tão romântica no verão para os namorados, era temida no inverno por causa dos lobisomens cujo uivar se confundia com o do vento.
O tempo! Ah! O tempo...
Às vezes nem parece o mesmo de quando nasci. Está tudo tão diferente! Para pior, acho eu. Naquela época não havia casa, casebre ou socha que não contivesse uma família lá dentro. Fosse uma pessoa para onde fosse, da Beirã ao Cabeço de Seixo, da Beirã à Atalaia, da Beirã às Amendoeiras, da Beirã à Retorta, por todos os lugares dos quatro pontos cardeais havia gente a morar, a trabalhar, a viver. Por toda a parte se ouviam vozes de gente a conversar, pastores a assobiar aos gados, searas a ondular nas tapadas, pomares e abundantes hortas a bordejarem os regatos e ribeiros. Chamava-se a tudo isso... Vida. E tudo isso deixou de existir. Bastaram trinta anos. Foi tudo varrido destas paragens como se vento ruim por aqui tivesse passado e com ele levado tudo.
E não sei se não foi mesmo.
Esse vento ruim, para mim, tem um nome fino e sonante. Apelidam-no de progresso. Eu não acho que ele nos tivesse trazido algo assim tão bom. Senão vejamos. Que progresso extingue tudo aquilo em que toca, desertifica freguesias, concelhos, regiões inteiras? Que progresso mata os usos e costumes de um povo maioritariamente rural de norte a sul, a sua agricultura, o seu comércio e serviços, obrigando ao êxodo em massa dessas populações para os grandes centros urbanos abandonando as suas raízes? Que progresso sobrecarrega o povo de impostos, taxas e sobretaxas para satisfazer os mercados, cujos donos visam apenas o lucro e a ganância de muitos, nem que para isso seja necessário promover a corrupção e o compadrio numa total ausência de decoro? E como se isso não fosse só por si já suficientemente censurável, ter ainda, como consequência direta, a asfixia e morte de quase todos os pequenos negócios que serviam e facilitavam a vida às populações das vilas e aldeias que teimaram e delas não quiseram arredar pé?
Que progresso extingue, em vez de modernizar e tornar rentáveis, ramais ferroviários inteiros, com tudo o que deles dependia, desrespeitando sem contemplações um património construído à custa do esforço e erário públicos, que serviram as populações e o país durante décadas? Que progresso permite que se cometam todos estes atropelos aos direitos mais elementares das pessoas, sucessivamente repetidos nos gabinetes climatizados da capital por decisores políticos sem a mínima sensibilidade social e cada um mais hostil que o anterior? Progresso é só planear autoestradas, pontes e outras obras faraónicas? E nós, os provincianos, só servimos para votar de quatro em quatro anos?
Resmungões mas obedientes, refilando mas sempre votando... e nos mesmos do costume. Triste sina a nossa!
O tempo não volta. Mas às vezes penso que muitas das coisas antigas o tempo repete. Por exemplo, no "tempo da outra senhora" dizia-se que a política vigente era a "dos três éfes". Fátima Futebol e Festas. Curiosamente no tempo da "senhora atual" esse espírito mantém-se vivo e vibrante mesmo passados quarenta e tal anos. Basta olhar as multidões que continuam a afluir a Fátima, as paixões sempre ao rubro no Futebol, e, como não, o quanto a malta gosta de Festas. Sejam feiras medievais, romarias ou campanhas eleitorais.
Dou a mão à palmatória e assumo sem qualquer encargo de consciência que também aprecio Fátima, Futebol não tanto, Festas menos ainda. Mas do que gosto a sério, tento praticar diariamente, ensinei aos filhos e ensino agora ensino as netas, são os valores e princípios fundamentais que me foram transmitidos pelos meus pais e avós, hoje tão raros:
- Respeito de uns para com os outros
- Dignidade no trato entre todos
- Honestidade nas palavras e atitudes
- Honradez nos compromissos assumidos
- Integridade de carácter
Ou, resumido tudo numa só frase...
- Vergonha na puta da cara.
Pela manifesta e total ausência da maior parte de tais valores e princípios em muitas pessoas ao nosso redor mas também, infelizmente, em muitas figuras públicas que deveriam dar público exemplo e muito pelo contrário são frequentemente a nossa coletiva humilhação, é que, inúmeras vezes me revejo muito mais no tempo passado, do que no presente.
Disse.
José Coelho
16.04.2016