quinta-feira, 14 de março de 2024

Decididamente (2)

Foto José Coelho

 

Este já não é o meu velho e querido país. Aquele país de gente alegre e genuína na sua maneira de viver tão diferenciada quanto o são as tradições usos e costumes de cada província e região. A alegria que sempre nos caracterizou foi sendo substituída pelos nossos semblantes fechados em consequência de inúmeras e sucessivas preocupações. O desemprego, a precaridade laboral com os seus baixos salários, o galopante custo de vida em contraciclo com os quase sempre míseros aumentos salariais, as pandemias e as guerras, enfim, esta incerteza no dia de amanhã que se abate sobre as nossas cabeças e dos nossos herdeiros qual cancro maligno sem remédio nem cura.

Jamais aceitarei ou irei entender que se atribuam pensões com menos de metade do valor do ordenado mínimo nacional à maior parte das pessoas que se reformam atualmente depois de trabalharem e descontarem uma vida inteira. Será que essas pessoas passam a comer só metade do que comiam, a pagar só metade de renda da casa, ou deixam de necessitar de roupa, de calçado e medicamentos, a partir do dia em que se reformam?

Porque é que 40 anos de descontos dão direito a tão pouco, mas na política bastam 12 anos de berros e insultos uns aos outros na Assembleia da República para se ter tanto?

Será que os políticos quando se reformam passam a comer em dobro e a pagar também em dobro nas suas compras?

Nunca entendi os cortes na saúde para poupar orçamentos de estado, enquanto milhares de milhões de euros são injetados regularmente na banca para proteger sabe-se lá que interesses. Por mais anos que eu ainda viva, nunca me irei esquecer da "briga" que tive com aquela digníssima senhora doutora no banco de urgências de um hospital onde a minha mãe agonizava há várias horas com pavorosas convulsões resultantes - soubemos depois - de uma sepsis, que, como quase toda a gente também sabe, em 90% dos casos é letal.

Mas a excelentíssima senhora doutora entendeu dar-lhe alta porque, disse-me, "aquele quadro" era normal na idade da doente, o que me fez "saltar a tampa" e já completamente "passado" lhe berrei aos ouvidos:

- Se a minha mãe fosse a sua mãe, senhora doutora, também a mandaria para casa neste estado?

Sabia com toda a certeza que ainda hoje me dói, que aquelas ordens "vinham de cima" e tinham de ser cumpridas. A contenção de despesas não se compadece com o estado por vezes crítico de doentes como era o caso da minha mãe que, por ter 87 anos e estar a atingir o limite do seu tempo de vida, estava a ser enviada para casa para ir morrer longe. E assim se pouparia uma injeção, uns comprimidos, quiçá algum frasco de soro para fazer baixar as despesas correntes daquela unidade hospitalar.

Estou hoje em paz com a minha consciência porque sei que pelo menos naquele dia e com aquela minha furiosa falta de ética para com a senhora doutora no banco de urgências, talvez tivesse salvo a vida da minha mãe. No momento seguinte, a senhora doutora perplexa com a minha emotiva reação mandou-me sair sem assinar os papéis da alta que era suposto eu ter de assinar, e, passados vinte minutos, um senhor enfermeiro veio ter comigo trazendo na mão um saco que continha as roupas da minha mãe para me dizer:

- A sua mãe fica internada e está na cama 1 do SO.

Dias depois foi transferida para outro hospital a 100 km de distância, não sei se por necessidade, se por vingança pelo meu protesto, mas pelo menos recebeu os tratamentos e os cuidados que o seu estado de saúde carecia naquele crítico momento. E nós fomos de igual modo visitá-la todos os dias, mesmo àquela lonjura.

Sinto vergonha de ter nascido num país que tem parido gente capaz desta e de tantíssimas outras indignidades em nome de políticas que hipocritamente visam um pretenso bem comum. Porque não poupam antes nas suas obscenas mordomias? Porque vivem os mentores destas decisões no bem-bom, no luxo e conforto onde nada falta nem aos seus filhos, nem aos seus pais, nem aos seus afilhados ou padrinhos.

Quem já viu um senhor ministro, um senhor deputado, um simples senhor secretario de estado, um CEO, um Administrador ou afins, na fila de espera da urgência de um hospital público durante sete horas com uma pulseira de plástico enfiada num dos pulsos como se fosse um objeto etiquetado para ir para arquivo?

Decididamente, não foi neste país que eu nasci…


José Coelho