segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Já não sou feliz aqui



Não sou de muitas conversas. Saí com certeza ao meu pai que era assim homem de poucas falas. A nossa vida em família sempre foi, contudo, bastante tranquila, apesar das inúmeras dificuldades num tempo em que a pobreza era condição geral de quase todas as famílias rurais da aldeia. Por isso o dia-a-dia era sair de casa antes do nascer do sol para ir trabalhar e recolher já noite fechada para cear à luz do candeeiro a petróleo uma sopa de legumes da época feita em lume de chão.
Sempre fui, no entanto, dado às letras. Ler, fosse o que fosse, tornou-se cedo o meu entretém por excelência. No bornal da merenda andava sempre algum livro pequeno ou grande e as horas de repouso eram dedicadas à sua leitura. Nem imagino quantos livros já li, mas com toda a certeza, alguns milhares. Em casa tenho muitos, muitos mesmo. Neste momento estou a ler "A história de um canalha" de Júlia Navarro, escritora de quem sou fã e da qual tenho alguns romances.
Talvez por isso e apesar de não apreciar ajuntamentos com muita gente, festas, cafés e bares, nunca me senti sozinho. Há lá melhor companhia que um bom livro? A gente embrenha-se na leitura de tal forma que “entra” para dentro da narrativa e quase “vive” o que está a ler. Mais! Às vezes fica-se com pena por ter de interromper a leitura para ir jantar, tomar banho, dormir, sei lá, fazer outra coisa que obrigue à interrupção daquilo que tanto nos motiva.
Sem ser uma pessoa solitária aprecio bastante a solidão. Daquela que me transmite paz e harmonia ao passear pelos campos, ao sentir a brisa no rosto, ou ao sentar-me no alto de um cancho a olhar o horizonte ouvindo o canto da passarada. Também muito pacífico acomodar-se a gente junto de uma fonte como a da Murta a ouvir o murmúrio tranquilo da água a correr, ou ainda caminhar pelas margens dos ribeiros da Cavalinha, das Águas, da Cabeçuda, ou até do rio Sever.
Há tantos lugares de eleição por esta minha linda freguesia!
Desde criança que palmilho todos estes recantos. Dantes sempre sozinho ou apenas acompanhado pelos meus cães, hoje já quase sempre com a marida porque a idade não perdoa e não é de todo aconselhável embrenhar-se uma pessoa sozinha por esses ermos. É que dantes havia gente por toda a parte, mas hoje já não há ninguém. Impera o mato e o silêncio absoluto, quebrado apenas pela fuga inopinada de algum javali, raposa ou saca-rabos, quando deles nos aproximamos.
Amo profundamente a minha terra. De tal modo que aqui reconstruí a casa onde nasci e onde tencionava passar o resto dos meus dias. Hoje já não tenho tanto a certeza disso. Sempre que me ausento uns dias, o regresso é doloroso porque me invade uma inevitável tristeza regressar ao lugar que tanto amo, mas que já não é, de todo, o lugar que já foi, o lugar que eu queria que fosse para sempre.
O silêncio que outrora se "ouvia" só nos campos, invadiu a aldeia.
E soa tão alto, que faz doer os ouvidos.
E a alma.
Só não decidi ainda o que fazer. Resignar-me e esperar mais meia dúzia de anos até ingressar no lar onde irei com certeza terminar os meus dias, ou revoltar-me e ir embora de vez para viver essa meia dúzia de anos noutro lugar qualquer com melhores condições, ainda que longe daqui?
É difícil resolver.
Sempre que a razão me sussurra ao ouvido "Sai daqui Zé, há mais mundo à tua espera", logo o coração se intromete a gritar e a contrapor "Onde queres tu ir, se o teu mundo e o teu lugar estão aqui?
E assim o tempo vai passando, monótono, nostálgico, sem vida, sem cor e sem sabor.
Honestamente reconheço que já não sou feliz aqui. Nem os livros fazem, como faziam antes, a mesma companhia. E descobri ainda que não era só da paz que ia procurar no silêncio dos campos, que eu necessitava. Também me fazia muita falta o bulício da aldeia, as luzes acesas nas janelas das casas, o som das vozes e conversas das pessoas lá dentro, os gritos da gaiatada a correrem pelas ruas, o cheiro dos jantares ao lume, o fumo a sair pelas chaminés, enfim, todos esses indícios de gente boa que cá viveu, amigos, conhecidos, vizinhos e família querida, que hoje aflitivamente rareiam.
José Coelho
Texto e foto
(Republicado)