Foi em finais da década de 50 que
comecei a servir como acólito na igreja de Nossa Senhora do Carmo na Beirã. Era
pároco recentemente ordenado o Reverendo Joaquim Caetano – já falecido – e foi
ele quem me escolheu para substituir o António Sarzedas que, chegado a moço,
não quis – exatamente como fazem as/os jovens de hoje – continuar a acolitar.
Para além dos meus pais, aquele reverendo sacerdote ensinou-me e transmitiu-me muitos
e bons princípios e por isso também a ele fiquei a dever uma boa parte do homem
que me tornei. Guardarei com gratidão enquanto viver, uma amizade, uma saudade, um respeito
e uma consideração ilimitados, pela sua memória.
Voltando um bocadinho atrás no
tempo, contava a minha falecida Mãe que desde mui tenra idade eu desatava a
correr rua abaixo mal ouvia tocar os sinos da igreja:
- Mas onde on’dé q’tu vais a
correr Zéi?
- Vou à "misha", Mãe. Vou
à "misha"…
Tinha de ser assim. Tudo indica
que a reverência pelo divino teve início logo na inocência desses primeiros
anos da minha vida.
Veio então, não muito tempo depois,
o tal convite do padre Caetano que me tratou sempre como a um filho. Os meus
pais não tinham posses para me comprarem roupas novas e era ele quem comprava e
pagava do seu bolso os tecidos para mandar fazer roupas domingueiras às
costureiras que então abundavam na aldeia para eu o acolitar devidamente trajado
com calções e calças de terilene, camisas de popeline, casacas e
blusões. Até os sapatos domingueiros ele me comprava na fábrica Ebro de Santo
António das Areias porque eu andava de pé descalço durante a semana e para os
domingos tinha apenas umas sapatilhas espanholas de fraco pano quase sempre
rotas.
Escrevo sobre isso assim sem
qualquer hesitação porque nunca escondi nem nunca senti vergonha da humildade das
minhas raízes e origens. Pelo contrário, orgulho-me profundamente da enorme herança
de valores e princípios que herdei, que tentei colocar em prática cada dia da minha
vida e também transmiti aos meus filhos.
Passaram cinco anos desde que na
Paróquia da Beirã deixou de haver missas aos domingos tendo sido substituídas pelas
missas vespertinas ao final da tarde de cada sábado numa mudança que há muito era
temida mas que sempre acreditámos demoraria mais tempo a acontecer. Tal só veio
provar que o tempo de Deus não é, nunca foi, nem nunca será, igual ao tempo do Homem.
Diz um dos Evangelhos que “a
vinha do Senhor é grande e os trabalhadores são poucos”. Foram essas as
circunstâncias que precipitaram tudo e obrigaram a redesenhar o mapa das nossas
celebrações eucarísticas semanais com a inesperada partida do saudoso Reverendo
Padre Luís Ribeiro e querido amigo. Não podendo mudar o rumo dos acontecimentos
continuei a fazer o que sempre fiz desde 1958. Colaborar com o pároco e a
paróquia naquilo que podia e sabia, mas fiquei inevitavelmente triste, pois são
já quase incontáveis as perdas de tudo o que fez parte da minha vida. Foram-se
os entes mais queridos, quase todos os vizinhos e muitos bons amigos-quase-família.
Nada ficou como era e eu próprio também
já não sou. De 1958 a 2021 são passados 63 anos de uma total dedicação e
empenho a preocupar-me e a cuidar daquilo que nunca foi meu, mas de todos, a
dar o melhor de mim a esta comunidade e seus representantes, sem nunca esperar
nada em troca. Está a chegar o tempo de sair e fechar a porta e como muito bem
me diz a minha nora mais nova grande amiga, de “deixar se preocupar com “aquilo”
como se fosse seu e de se ralar com o que nunca vai mudar e só o desgasta.”
Tudo tem o seu tempo e o meu está
mais que cumprido. Não sendo o único resistente, sou dos poucos que ainda lá continuam,
mas porque ninguém é insubstituível só faz lá falta quem estiver. Também isso
a Vida me ensinou.
José Coelho
07.09.2021