A acolitar o Padre Caetano no casamento do senhor amigo, referido neste texto.
Estávamos
em 1958 quando comecei a servir como acólito (ou sacristão) na igreja de Nossa
Senhora do Carmo da Beirã. Era pároco recentemente ordenado, o reverendo
Joaquim Caetano – hoje de avançada idade mas ainda completamente lúcido a
residir já no Lar para Sacerdotes do Seminário de Portalegre – e foi ele que me
escolheu para substituir o António Sarzedas que chegado a meio moço não queria
continuar. Para além dos meus pais, aquele reverendo sacerdote ensinou-me
coisas e transmitiu-me valores tais que também a ele fiquei a dever muito do
que fui pela vida fora quer como homem quer na formação do meu carácter e
integridade. Por isso guardo até hoje uma amizade, um respeito e uma
consideração sem limites, por ele.
Voltemos
um bocadinho atrás no tempo. Contava muitas vezes a minha falecida Mãe que
desde mui tenra idade, com 2 ou 3 anos apenas, eu desatava a correr rua abaixo
mal ouvia repicar os sinos da igreja:
- Zéi,
mas onde on’dé q’tu vas a correr tanto? Anda ma'sé p’ráqui antes que leves
alguma nalgada…
- Ia à
"misha", Mãe. Ia à "misha"…
Tinha que
ser assim. Tudo indica que o meu fascínio pelo divino começou logo na inocência
da mais tenra idade.
Veio
então, dois ou três anos depois, o convite para acólito do padre Caetano que me
tratava quase como a um filho. E porque os meus pais não tinham posses para me
comprarem roupas novas, era ele quem comprava os tecidos e mandava fazer as
minhas vestes domingueiras às costureiras que naquele tempo abundavam na
aldeia, para o acolitar devidamente aprumadinho com calções ou calças de
terilene, camisas de popeline, casacas e blusões. Até os sapatos domingueiros
me trazia também da fábrica Ebro de Santo António das Areias, pois por norma eu
andava de pés descalços durante a semana e para os domingos só tinha umas sapatilhas
de contrabando, de fraco pano e muito fatelas.
Não
haverá já por cá muita gente que se recorde destas coisas e as que houver se
calhar não irão ler as minhas memórias porque ou já serão bastante idosas ou
nem saberão ler. A propósito desta narrativa, aconteceu uma coisa curiosa no
final da primeira Missa Vespertina da nossa paróquia. Saíamos da igreja eu e o
novo Pároco quando apareceu um antigo e respeitável amigo - o Senhor Nicau -
que fazia anos nesse dia. E entre outras coisas que conversou com o Senhor
Padre Marcelino, disse-lhe também:
- Aqui o
“nosso” Zé Manel foi o sacristão do Padre Caetano no meu casamento. Está lá nas
fotografias! Ora se eu faço hoje 77 anos, veja lá o senhor padre há quantos
anos isso foi…
Saíamos,
escrevi eu, da primeira missa vespertina da Paróquia da Beirã. E fui
propositadamente buscar algumas das minhas memórias para utilizar em jeito de
introdução àquilo que vou escrever a seguir.
Sucedeu
nesse dia o que há muito se previa mas sempre acreditámos demoraria ainda algum
tempo a acontecer. Os sinos da igreja da Beirã que desde julho de 1943 tocaram
ininterruptamente todas as manhãs de domingo por cerca das onze horas a
convocar os fiéis para a missa, calaram-se a 10 de Setembro de 2016 para esse
efeito, provavelmente para sempre. Como dizem os Evangelhos “a vinha do Senhor
é grande e os trabalhadores são poucos”. Foram exatamente essas as
circunstâncias que precipitaram e obrigaram a redesenhar o mapa dos
acontecimentos com a inesperada partida para a eternidade do Reverendo Padre
Luís Ribeiro. Tentando manter vivas as comunidades cristãs dentro dos
curtíssimos limites do humanamente possível, a habitual Missa Dominical da
Beirã teve que passar à categoria de Vespertina no final das tardes de sábado.
Foi o melhor que conseguiu planear o novo Pastor que o veio substituir.
Não sendo
nada fácil para ele, o nosso dever é não só acatar a nova realidade como também
ajudá-lo. Pelo meu lado, embora a minha saúde não esteja por aí além muito
famosa já, continuarei a fazer o que sempre fiz desde 1958. Mas fiquei triste.
Inevitavelmente. São já quase incontáveis as perdas. Foram-se os entes
queridos, quase todos os vizinhos e muitos bons amigos. Até os comboios que,
não sendo gente, eram a vida e a alma desta aldeia. Nunca imaginei que amava
sem dar por isso o agudo apito das ruidosas locomotivas pois só o descobri
quando elas deixaram de vir e apitar. No dia 10.09.16 foi-se também a missa
dominical, aquela cujo repicar dos sinos me fazia desatar a correr rua abaixo
há mais de sessenta anos atrás.
Neste
momento a melhor forma de vos dar conta do meu estado de espírito talvez seja
reescrever o poema encontrado na parede de um dos dormitórios para crianças do
campo de extermínio nazi de Auschwitz:
“AMANHÃ
FICO TRISTE… AMANHÃ!
HOJE NÃO…
HOJE FICO ALEGRE!
E TODOS
OS DIAS, POR MAIS AMARGOS QUE SEJAM, EU DIGO:
AMANHÃ
FICO TRISTE, HOJE NÃO…”
José
Coelho
In
Histórias do Cota
(resumido)