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Tudo está armadilhado
José Pacheco Pereira -
20/02/2016 - Público - Opinião
A “Europa” actual quer a queda do governo Costa e por isso o
humilha com novo pacote de austeridade, e força a ruptura com o BE e o PCP.
Eu já não estou muito
para surpresas, mas ainda tenho alguma capacidade de ficar surpreendido. E por
isso me surpreende a ligeireza, para não dizer irresponsabilidade, como que os
partidos da actual maioria tomam o que estão a fazer, ou melhor, o que não estão
a fazer. Ou seja, meteram-se num curso muito arriscado, perigoso, cheio de
dificuldades, e comportam-se como se houvesse uma qualquer normalidade na
actual situação que ajudaram a criar, e como se pudessem continuar a fazer
política “habitualmente”.
Preciso desde já que
esse curso — um governo minoritário PS com apoio parlamentar do BE e do PCP —
me parece positivo, para puxar a alavanca para o lado oposto daquele para que
estava toda inclinada, à direita, e assim abrir caminho a um recentramento da vida
política portuguesa. Hoje, a única possibilidade de um regresso ao centro, —
centro-esquerda, centro-direita —, é haver sucesso num governo de
centro-esquerda que acabe com o estado de excepção que era o “ajustamento”
eterno, com uma efectiva limitação à democracia e a perda quase total da
soberania.
Se Costa não tivesse
rompido com o “arco de governação”, a governação PSD-CDS continuaria
exactamente a mesma política, porque ela é pensada como sendo para 20 ou 30
anos, como se isso fosse possível em democracia e, como não teria resultados,
teria que ser eterna. Para ser “eterna” teria que ser cada vez mais
autoritária, como já estava a ser.
O outro factor positivo
foi a eleição de Marcelo Rebelo de Sousa num quadro de “esquerda da direita”,
ou seja, ao centro, que, se o Presidente eleito permanecer fiel à sua campanha,
pode ajudar também a virar essa alavanca que Passos, Portas e, no fim do
mandato, Cavaco, com o apoio político da Europa do PPE, puxaram praticamente
até ao chão. Não sei se isto resulta — governo de centro-esquerda mais
Presidente moderado —, mas, aqui sim, não vejo outra alternativa hoje. Pode
haver amanhã, mas hoje não há, ou há sucesso ou há desastre. Por isso não me é
indiferente esta experiência governativa, não sendo este o “meu” governo, por
muito que assobiem as intrigas das claques.
Dito isto, no actual
contexto europeu, o que se está a passar em Portugal, sendo na verdade apenas
uma tímida mudança, é tratado quase como
uma revolução e, como tal, mobiliza as gigantescas forças que estão preparadas
para matar no ovo qualquer desvio menor que seja ao cânone alemão. O governo de
Costa tem todas as probabilidades de ser derrubado pela Europa do PPE e dos
socialistas colados aos alemães, seja directamente por um qualquer “chumbo” europeu,
seja indirectamente pela obrigação de aplicar políticas que lhe retirem o apoio
parlamentar do BE e do PCP.
O Orçamento de 2016 foi
apenas uma amostra e o governo saiu já bastante magoado dessa amostra, que lhe
abastardou a política que pretendia seguir, criou desconfianças e distâncias
com os seus aliados e colocou-o junto da opinião pública como um governo
fragilizado, errático nas finanças e na economia, mesmo incompetente. O
comportamento de diktat europeu para as décimas do défice, a sucessão de
declarações hostis sobre os “riscos” da política portuguesa de incumprimentos
vários às “regras” do Tratado Orçamental, contrasta com a complacência face a
idênticos incumprimentos do governo anterior, que, como era “amigo”, tinha
margem de manobra e podia no fim esnobar dos relatórios do FMI, que hoje brande
contra o PS.
Aliás, a dureza e
hostilidade que existem contra o governo de Costa, contrastam com a vontade dos
principais dirigentes europeus darem a Cameron medidas que significam recuos
importantes (e que também estão nos Tratados) em matéria de liberdade de
movimentos e direitos sociais dos emigrantes, para que este volte com um frágil
papel para convencer os eleitores ingleses que afinal, com uma longa lista de
opting out, ainda podem continuar na Europa. Ou seja, em matéria de direitos
sociais, a mesma Europa que não cede a Portugal uma décima no défice sem
vilipendiar um governo eleito, está disposta a abdicar perante a pressão
inglesa. Na economia do “ajustamento”, não há um milímetro de cedência às
“regras”, nos direitos sociais, tudo é negociável. Por tudo isto, a “Europa” actual, Schäuble,
Dijsselbloem, Moscovici, Dombrovskis, mais as suas cortes de funcionários
zelosos, a última coisa que desejam é que possa haver qualquer mitigado sucesso
de um governo que está a cometer esse crime de lesa-economia que é “reverter”
salários e pensões, taxar fundos e bancos e não ao contrário.
O braço armado desta
política é, hoje, em Portugal o PSD de Passos, que está convencido de que o seu
regresso ao poder é a curto prazo. Passos continua a comportar-se como se fosse
um Primeiro-ministro usurpado, de bandeirinha governamental na lapela, a fazer
falsas inaugurações, e anda na Europa, o seu grande aliado, a instigar a fronda
contra a política do governo e a falar para a as agências de rating e os
mercados mostrando-lhes qual o sentido político que pode ter em Portugal uma
subida de juros ou um abaixamento de rating: destruir o governo “deles”. Sempre
que falam em “preocupações”, mesmo com análises falsas como as das subidas de
juros há uma semana, percebe-se muito bem que mais do que preocupações são
desejos.
PS, PCP e BE incitaram
a sua experiência fora do “arco da governação”, derrubando um governo assente
no partido que ganhou as eleições, e apoiando um partido que as perdeu. O
primeiro não tinha maioria parlamentar, o segundo tinha, por isso o novo
governo tem toda a legitimidade, mas parte sempre fragilizado e só pode superar
essa fragilidade pela qualidade e integridade da governação. Ora esse acrescento
de legitimidade está a fazer-se no meio de uma ecologia venenosa, num terreno
armadilhado e com forças poderosas muito para além de uma apatia desconfiada,
numa actuação agressiva.
Tem a hostilidade
aberta dos meios de comunicação social, salvo raras excepções, que se
comprometeram com as principais ideias do “ajustamento”, quer com proselitismo,
como aconteceu com muita imprensa económica, quer interiorizando o modo como se
colocam os problemas com a “gramática” dos “ajustadores”. O “não há alternativa”
entrou profundamente no espaço mediático e no espaço público e, por isso,
qualquer inversão, “reversão” como agora se diz, é vista como uma blasfémia
incompetente, uma cornucópia de custos por pagar, um risco de bancarrota ao
virar da esquina. A “economia”, como eles a pensam, tornou-se única e
inquestionável e por isso o mundo ou é de Sócrates e da bancarrota ou é de
Passos e da troika, não há meio termo.
Este comportamento
reflecte também o dos principais interesses económicos presentes na governação
do PSD-CDS, e que com eles formaram uma forte aliança, assente no primeiro
governo em Portugal que se pretendia comportar como uma empresa, pensava como
se o país fosse uma empresa, despedia para flexibilizar, diminuía salários e
pensões, e acima de tudo queria quebrar a espinha a essas sobrevivências
arcaicas do 25 de Abril como eram sindicatos e greves. Esses interesses
económicos, que são de uma parte da economia, e não necessariamente da mais
eficaz, sentem-se também usurpados do instrumento da governação, e por isso
farão a vida negra ao PS, até o derrubarem ou o comprarem em todo ou à peça.
Face a esta ecologia, o
PS comporta-se como se pudesse continuar a governar como sempre fez, dá umas
coisas a uns e espera sentado pela sua fidelidade; tira umas coisas a outros e
depois assusta-se, recua e avança como pode. Ainda não interiorizou o preço que
tem a pagar se esta experiência falhar e não tem sentido de urgência face aos
riscos, principalmente europeus que estão aí à porta. A “Europa” actual quer a
queda do governo Costa e por isso o humilha com novo pacote de austeridade, e
força a ruptura com o BE e o PCP. Sim, porque o PS num dilema, vai escolher a
“Europa” e deixar o país ao PSD e CDS.
Por sua vez, BE e PCP
parecem também não ter percebido que vai haver um antes e um depois dos acordos
que fizeram, e que nada voltará a ser como dantes, conforme eles falharem ou
tiverem sucesso. Se falharem voltarão a ter uma função meramente tribunícia,
agravada pelo desespero dos seus eleitores quando, por uma governação à direita
que será agressiva e vingativa, perceberem o país sem esperança em que estão.
Partirão por dentro pela radicalização e perderão ainda mais relevo social para
fora das suas fronteiras militantes.
PS, BE e PCP ou
reforçam de qualquer modo a coordenação política, que lhes permita ganhar algum
ânimo colectivo e defrontar em conjunto e de forma capaz toda a tempestade que
cai e vai cair sobre o governo, ou vão ter um lindo enterro. Lindo porque deve
estar sol, mas só por isso.