Sózinho em casa há um par de dias. A condição de avós a isso obriga de vez em quando. Ainda bem, porque é mesmo muito gratificante tão magnífica condição. E há que assumir as responsabilidades acrescidas que as netinhas trouxeram às nossas vidas. Assim, com o infantário em férias, a pequena utente teve que ficar por casa, e, como os papás trabalham os dois, avança a avó para a missão de ficare a tomar conta, coisa que como devem calcular ela não se importa nada e adora fazer.
Não é a primeira vez que por esse ou por outro motivo fico sozinho vários dias, semanas até, na minha Toca. E também não me importo muito. Primeiro, pelo motivo que é. E segundo, porque sabe bem de vez em quando sermos os donos absolutos do nosso tempo, gerirmos o nosso dia como muito bem nos apetece, mergulharmos por nós adentro à procura da paz que existe no silêncio de uma casa assim semi-vazia, ou tão só, quiçá, para aquietarmos as múltiplas inquietudes que, queiramos ou não, atormentam regularmente a nossa vida.
Curiosamente, levanto-me todos os dias muito mais cedo do que o costume. A primeira falta que sinto imediatamente é o do aroma delicioso do café do pequeno-almoço e das torradas preparadas pela minha companheira de já quase uma vida inteira que costumam inundar todo o rés do chão da nossa casa logo pela manhãzinha, até ouvir o habitual:
- Zé, já podes vir!
Por isso tenho que ser eu a providenciar agora o meu próprio mata-bicho. Mas não é a mesma coisa! Para mim sozinho o jarro da máquina de café dá para 3 dias. E deixemos lá de tretas que um café para ser gostoso tem que ser fresco, isto é, acabadinho de fazer.
Depois vem a faxina do almoço. Que vou fazer hoje? Coisas simples. Um bacalhau com grão, uma salada fria, uma sopa de legumes. Mas faço logo se possível que chegue para dois dias que este calor não convida a devaneios junto do fogão. Vai lá vai... Ah! E outra missão imprescindível. Tratar dos canitos. Bem... Canitos? Só se for o caniche Bolinhas que esse sim é pequenote. Mas a Suri? Eu costumo tratá-la e cumprimentá-la sempre com um "olá cancelão" porque ela parece um burro (se calhar uma burra) no seu tamanhão de rafeira alentejana desengonçada e com uma voz tão grossa que é capaz de arrepiar todos os cabelos de um qualquer desconhecido que se aventure no quintal sem nós estarmos por perto.
Outra curiosidade é o facto de ainda não ter sequer ligado a tv da sala nem uma só noite. Prefiro sentar-me na varanda do quintal a ver o entardecer. É sempre um quadro magnífico observar as rolas a disputarem com as pegas barulhentas os primeiros figos pingo de mel que este ano já estão a ficar precocemente maduros. Será deste calor anormal? Até os cachos da latada também estão a ficar já dourados e translúcidos. Já os provei! Ontem vi um papa-figos a pousar na figueira. Coitado! Não consegue passar despercebido com aquelas suas cores amarelo vivo com azul-escuro. Ou será amarelo e negro?
O dia a ir-se embora visto desta minha varanda é um quadro digno de ser reproduzido em tela por qualquer pintor. Todos os dias, seja verão ou inverno. Neste tempo quente o sol começa por deixar o vale onde fica a estação e mais além o ribeiro da Cavalinha. Depois vai banhando de ouro a Murta e os cumes graníticos da Anta e da Cavalinha de Cima para se despedir na Meirinha. Quando desaparece completamente do horizonte, a noite vem logo atrás lá dos lados da Herdade dos Pombais, onde parece andar escondida. No inverno dá-se exatamente o inverso. Os cumes que agora se despedem de nós com o dourado do sol poente, enchem-se de uma neblina branca e húmida com o ar frio do anoitecer que vem descendo até ao vale e transmite um ar misterioso à paisagem. Só falta mesmo aparecer no meio dela, D. Sebastião.
Esta região raiana pedregosa e inóspita que pouco mudou com o passar dos séculos, até mesmo dos milénios como provam os inúmeros vestígios arqueológicos existentes por toda a parte, é sem dúvida o meu paraíso na terra. Aqui encontrei sempre a paz e a tranquilidade que necessitava, por maiores que tivessem sido os meus problemas e desassossegos. Trago hoje no peito uma dor nova e que não é física mas que incomoda tanto ou mais que aquelas que passam com analgésicos. É a dor de ver esta minha amada terra a ficar sem ninguém. Tudo aquilo que fez parte da minha vida até aos 60 anos está a desaparecer em passo de corrida. E sei que é absolutamente irreversível. Há dias comentei tristemente com a minha companheira: - Já nem chocalhos de gado se ouvem ao longe, Maria... Só o silêncio nos vai rodeando já!
Aposto que se os nossos antepassados cá voltassem, não iam gostar de ver tudo isto assim votado a um completo e total abandono. Não vem longe o tempo em que muitas destas ruas, casas e quintais serão invadidos pelo mato e pelas silvas e se irão transformar em montões de ruínas como está já a Herdade do Pereiro, o Ramal de Cáceres e muitos caminhos de acesso a muitas propriedades. Não vem longe o tempo em que estes pequenos povoados da raia se irão juntar aos vestígios arqueológicos milenares para fazerem parte do seu conjunto. Como é possível que em duas ou três décadas se tenha destruído o que se construiu ao longo de quase um século e meio? A História o dirá. E julgará. Ou talvez não...
São estas coisas todas e muitas outras mais que me acodem ao espírito quando arranjo um tempo para ficar assim a sós comigo.