segunda-feira, 22 de março de 2021

Mea culpa

A casa onde nasci e moro, e tudo à volta
Foto José Coelho - Fev 21


Na voragem dos dias que me parecem cada mais céleres e à medida que vou envelhecendo dou por mim a pensar inúmeras vezes que a vida nunca deixou de me surpreender. Outras, porém, tenho a nítida sensação de que já vivi mais coisas boas e menos boas do que a maioria das pessoas do meu tempo.

Após 69 “quilómetros” de “caminhada”  por uma vida repleta de experiências – cada uma mais inesperada que a outra – e rodeado pelas minhas tão doces quanto queridas memórias, desfruto serenamente o dia a dia no sossego benfazejo da casa que reconstruí sobre a outra mais pequena da qual foi sábio “arquiteto” o meu saudoso Pai.

Este silêncio que me faz companhia é apenas pontualmente interrompido pelo cantar dos galos da vizinhança ao raiar da aurora, pelo arrulhar das rolas e chilreio da outra passarada no arvoredo das redondezas durante o dia e ao anoitecer pelo monótono pio dos mochos e corujas que moram também paredes meias comigo, nos canchos da tapada. Todos estes pacíficos “vizinhos” me acompanham desde sempre, pois ouço-os desde que nasci.

É profundamente benfazejo viver neste lugar que quotidianamente trás de volta ao meu imaginário a voz doce da minha mãe, o falar pausado e meigo do meu pai, o alegre e cristalino gargalhar das minhas queridas irmãs. E à mistura com essas inesquecíveis lembranças, fácil é também reconstituir os aromas da ceia a ferver na sertã, do tabaco de mortalha que o tio “Antónho” fumava, enquanto aguardava pela ceia, sentado ao lume.

Apressados em viver a vida para alcançar as nossas metas, descuramos muitas vezes o valor intrínseco dos afetos ainda que sem má intenção, remetendo para segundo lugar o que temos de mais sagrado: A Família. Mãe, Pai, Irmãos, Avós, Tios, quiçá alguns bons Amigos até. Depois a vida passa, as metas nem sempre são tão importantes como imaginávamos, quantas vezes não terão sequer sido alcançadas. Entretanto a Família vai diminuindo porque a vida no seu imparável percurso vai-se extinguindo.

E como o acordar inevitável de qualquer sonho, chega também o momento em que começamos – quase sempre tarde demais – a  perceber que a vida já vai de vencida. Inutilmente olhamos para trás em busca de tudo o que amávamos, e que, sem disso nos termos apercebido por havermos andado demasiado ocupados, era o que de mais valioso e importante possuíamos. Porém não há mais nada a fazer porque não é possível regredir no tempo, restaurar afetos, recuperar enfim, tudo o que não avaliámos no tempo certo.

Vamos também envelhecendo sem quase nos apercebermos e só quando uma dor numa articulação começa a ser frequente, o coração começa a trabalhar irregularmente, a necessidade de consultar o médico deixa de ser pontual e passa a ser recorrente, percebemos que estamos a atingir o ponto de não retorno. E aí sim, damos conta que a nossa vida é finita, que as coisas menos boas não acontecem só aos outros, que é tempo de tentar – ainda e se possível – viver.

Não sou, nem quereria ser, exceção. Este desabafo na forma escrita mais não é também do que um sincero “mea culpa”. Vivi intensamente a vida olhando sempre mais para a frente do que para o lado ou para trás, apesar de não ter sido, de todo, nada fácil. Uma infância humilde onde faltou quase tudo menos o amor fraterno, uma adolescência precoce porque mal terminei a escola primária tive que ir guardar ovelhas em vez de continuar a estudar como tanto gostaria de ter podido.

Mais adolescente que adulto apresentei-me à inspeção militar como voluntario aos dezassete anos, assentei praça aos dezoito, fui mobilizado para a guerra aos dezanove, para mineiro aos vinte e dois, ingressei a duras penas nas forças de segurança aos vinte e seis, na minha incessante procura de um lugar ao sol onde sempre e só quis conseguir o ganha-pão para constituir família e dela cuidar.

Nessa luta constante contra ventos por vezes bem agrestes, tentei como pude nunca esquecer o tal lado sagrado onde sempre estiveram e me apoiaram todos os que amava, amo e amarei incondicionalmente enquanto viver. Olhando hoje para trás, nem sempre consigo evitar a imensa nostalgia que tantas vezes me invade. Porém, conhecendo-me como me conheço, sei que se voltasse a nascer faria tudo de novo exatamente como fiz até aqui.

Apesar das dificuldades, tenho muito mais para agradecer à Vida do que para lhe pedir, porque me deu sempre saúde, força anímica e coragem suficientes para completamente sózinho, sem qualquer outro apoio, vencer grandes e difíceis desafios, permitindo-me assim alcançar todas as metas e objetivos que tracei, por mais inalcançáveis que aparentassem ser. A mesma Vida que tanto me ajudou, ensinou-me ainda quanta razão tinha Nelson Mandela, quando afirmou:

 “Tudo é considerado impossível, até acontecer.”

 José Coelho