Há dois meses que andamos, todos os dias de segunda a sexta, a caminho do centro de saúde da vila, para tratar uma tendinite do ombro da minha companheira. Chegamos lá sempre por volta das onze e meia e despachamo-nos só depois da uma da tarde. Tardote para o almoço. E às onze horas quando abalamos de casa é demasiado cedo para ele. Hora manhosa mesmo! Mas nestas coisas quem manda, pode... Deixo-a por isso à porta da fisioterapia e vou sempre dar uma volta para entreter o tempo. No dia em que aconteceu a estória que pretendo contar-vos hoje era quarta-feira e fui à farmácia aviar uma receita.
Assim que entrei, vi-a logo. A minha prima-irmã Antonieta com os seus 83 bem conservaditos anos, sentada num canto da farmácia a medir a tensão. Fui dar-lhe o beijinho da praxe porque eu ainda sou do tempo em que os nossos pais nos ensinavam a distinguir dessa maneira a nossa família mais chegada. Pedir a bença aos pais e aos avós dando-lhes um beijo nas costas da mão que eles imediatamente nos estendiam e dar um beijo em cada face dos tios e primos-irmãos porque se uns eram os irmãos dos nossos pais, os outros eram por isso mesmo nossos meio-irmãos. Já agora devo acrescentar que ensinei exactamente o mesmo aos meus filhos e é com um beijo na face que eles cumprimentam toda a família chegada sem qualquer dificuldade ou relutância. Mas voltemos à farmácia Freixedas.
Aviei os medicamentos, a prima pagou o que tinha também ido fazer e saímos os dois em animada cavaqueira porque ela é uma grande e lúcida conversadora. Quem sai aos seus... Convidei-a para irmos tomar café dado que tinha mais de uma hora pela frente e nada para fazer a não ser esperar pela minha lesionada companheira. Chuviscava. A prima ainda não tinha tomado o pequeno almoço e por isso foi só atravessar a rua e instalar-mo-nos confortavelmente numa mesa no interior da pastelaria Sol Nascente. Inevitavelmente a conversa caminhou para as muitas e boas recordações que ambos guardamos dos entes queridos que já partiram. Depois, como era de prever, derivou para os poucos que ainda restamos "daquele tempo", a começar por ela, que está já sozinha no mundo há um bom par de anos.
Os tios Ciro e Maria d'Alegria, seus pais, partiram há mais de duas décadas. De velhice. O seu único irmão, o primo Joaquim, suicidou-se ainda na meia idade, só Deus saberá porquê. O marido, excelente pessoa o Fernando, finou-se de doença maligna. Lisboetas de toda a sua vida, nunca esqueceu as raízes maternas castelovidenses e comprou casa na vila para onde vem passar longos períodos de repouso e sossego, principalmente no verão. Está por isso de abalada para a cidade porque o inverno é muito mais ameno na capital do que na serrana vila. Conversa puxa conversa e perguntou-me de repente se tenho visto o primo Augusto. E desatou a contar-me uma estória que eu não conhecia acerca dele. Estória triste, por sinal. Coisas sobre as quais eu ouvira falar muito pela rama e não entendi muito bem.
Claro que não vou relatar o que me foi contado, por respeito à dignidade e privacidade da vida daquele meu parente próximo. Mas fiquei triste com o que ouvi, pois segundo a prima Antonieta, o Augusto estará "a pagar" pelos erros do passado. Não sei se concordo, mas pronto. Cada um é dono da sua vida e o que cada um faz com ela, é da sua conta e responsabilidade. Quem somos nós por isso, para nos pormos a dar palpites e a fazer considerações acerca daquilo que vai no íntimo de cada um? A Antonieta estava melindrada com o Augusto. Deu para perceber. As razões que lhe assistem também não me convenceram. Tenho o hábito de não tomar o partido só de uma das partes sem conhecer as razões da outra parte também. Acho que toda a gente devia ter esse cuidado. Porque só ouvindo as duas partes se podem tirar algumas conclusões. E muitas vezes nenhuma das partes tem razão.
Tão enleados estávamos na conversa que não demos pelo tempo passar e só o chamado da minha Maria a perguntar onde é que eu estava, nos interrompeu. Pouco depois juntou-se a nós e por ser já tarde decidimos almoçar pela vila naquele dia. Convidámos a prima a fazer-nos companhia. Não quis. Até porque tinha acabado de tomar um copo de leite e uma sandes de fiambre. Provavelmente já nem iria almoçar, disse-nos. Saíamos da pastelaria exactamente quando o primo Augusto chegava à porta da mesma. Quase cego, um ar abatido e muito velhinho para os seus 73 anos. Viu-me e conheceu-me logo. Dei-lhe um abraço, como lhe dou sempre que o encontro. Vinha chateadíssimo: - Porra Zé, já fiz merda! Desabafou. - Então? Que te aconteceu? Perguntei. - Tratei mal a rapariga do Centro de Dia e ela não merecia. Se tivesse ali uma pistola dava um tiro na minha cabeça, porra...
Acalmei-o como pude. A Manuela deu-lhe o beijinho do costume e acalmou-o também. - Vá, esqueça já isso! Especada à porta da pastelaria a equilibrar-se nas suas duas canadianas, a prima Antonieta olhava-nos atentamente. Deve ter pensado com certeza: - Olha! Eles são amigos! Continuava a chover aquele molhaparvos miudinho. O Augusto olhou para a Antonieta. A Antonieta olhou para o Augusto. Ambos pouco à-vontade. De repente a Antonieta perguntou-lhe: - Conheces-me? Sabes quem eu sou? - Sei... Conheço... Respondeu o Augusto pouco entusiasmado. E eu, para ajudar a desanuviar o ambiente, exclamei: Olha Augusto, vamos almoçar ao Djony. Vem connosco! - Já almocei no Centro de Dia Zé. Arroz com frango! Obrigado na mesma. Foi por causa disso que tratei mal a rapariga e agora estou tão chateado comigo mesmo, porra...
Acompanhei-o ao interior da pastelaria. Ao passar pela prima Antonieta ela sussurrou-me: - Paga-lhe lá o café e um bolinho que eu depois dou-te o dinheiro! - Não é preciso, prima, eu pago. Respondi. Ajudei o primo a sentar-se e perguntei ao balcão o que costumava ele beber. - Um carioca e um copo d'água apenas. - Não queres um bolo, uma outra bebida? - Não, obrigado. Agora preciso é de me acalmar! Respondeu. Despedimo-nos. - Até um dia destes. Fomos mesmo almoçar ao Djony nesse dia porque entretanto já passava das duas. Algumas horas mais tarde, telefonema da prima Antonieta. Comovida. Tinha estado toda a tarde a pensar naquele encontro. E acrescentou: - Hoje para mim foi uma tarde memorável! Já pensaste que foi a primeira vez nas nossas vidas que se juntaram estes 3 primos? - É verdade! Não tinha pensado nisso! Três primos irmãos cujo primeiro encontro a três acontece à porta de uma pastelaria. A Antonieta com 83 anos. O Augusto com 73. E o José Manuel com 63...
Ele há coisas!
A Antonieta nascida, criada e vivida em Lisboa. O Augusto em Luanda e eu na Beirã. Tão longe uns dos outros sempre. Que destino seria este que nos juntou aos 3 naquele lugar, naquele dia? Um encontro improvável de voltar a acontecer, na terra onde nasceu a mãe da Antonieta, a mãe e o pai do Augusto, e o meu saudoso António Maria Coelho. Teriam sido eles, agora que estão lá todos juntos na Terra da Verdade, que mexeram os cordelinhos?
Sei lá se não... Mas já agora... Obrigado a todos eles!