Talvez por essa sua inacessibilidade tenham sido desde sempre os meus lugares de eleição. Porque lá tudo quanto nos rodeia é puro. O cantar
da passarada pelas manhãs e também pelo silêncio dos entardeceres. A brisa suave que nos acaricia o rosto nos dias amenos ou o vento agreste que nos greta os beiços nos dias frios. Tudo é genuíno. Não existe buraco, cancho ou lapa que eu não conheça ou não tenha visitado, por mais ermo e longínquos que estejam. Cresci e fiz-me moço a percorrer estas paisagens onde apanhei tantíssimos braçados de lenha de giesta seca para a mãe Florinda e também para a avó Amélia cozinharem as nossas comidas ao
lume, porque o luxo dos fogareiros a petróleo ou a gás ainda não existia.
Nestes descampados me refugiei centos
de vezes em busca de tranquilidade quando me senti inquieto. Por mil e um
motivos. Pela aspereza da vida daquele tempo, pelos meus primeiros amores e desamores, mas também, quantas vezes, pelo meu indomável espírito que nunca entendeu render-se, fosse
qual fosse o desafio. Por estas paragens existem imensos lugares onde não chega
ninguém durante semanas, meses, anos até. E quando alguém lá tem de ir, desloca-se
em transportes apropriados, tratores e outras alfaias agrícolas ou carrinhas
4x4, onde, além de se transportar, leva ainda palhas e rações para o gado que por lá
pastoreia todo o ano. E sítios há onde só vão para fazer lenha no outono, ou para a apanha da cortiça no início do verão, sua principal fonte de rendimentos de nove em nove anos.
São quase todos estes lugares parte integrante da minha
história de vida, a começar pela Cavalinha onde me acolheram sempre com tanto amor e
carinho a avó Amélia e o avô/padrinho José que me deu o nome. Também o Muro de
que tanto ouvi falar a vida toda porque foi onde nasceu e se criou a minha mãe
mais os seus sete irmãos e irmãs, meus tios e tias maternos. Tantas peripécias suas contadas
nos nossos serões à lareira! E o Matinho, onde o avô José era guardador de gados, onde a avó
Amélia mondava searas com outras companhas. E para onde foram depois também transitando para trabalharem nos campos à medida que iam crescendo, todos os meus tios e tias.
Quantos lugares conheço por estes arredores?
São quase incontáveis. A Cabeçuda, a Herdade dos Pombais, as Amendoeiras,
o Batão, o Bravo a Bola da Cera, o Cavalo, os Aires,
a Pereira, a Nave, a Anta, a Murta, a Meirinha,
a Retorta, o Monte Velho, o Pereiro Velho, a Malhadinha
Alta, a Herdade do Pereiro com a sua Fadagosa, a Torre,
o Vale do Cano, o Cabeço de Seixo, os Pavios, o Chão
Salgado, o Santo Amador, a Saragoça, a Defesa, as Cebolas,
o Vale da Amoreira, as Águas, a Castinceira, a Bica,
o Cabril, a Fonte Salgueiro, o Cabeço, o Cancho de Ruivo, os Carvalhos de
Roque, a Lagem Alta e tantos, tantos outros que agora não me ocorrem…
Conheço-os de cor porque os percorri a
pé, sozinho e acompanhado, inúmeras vezes. Nunca tive sequer uma bicicleta quando
a maior parte dos meus amigos até já motorizadas tinham. Mas nunca me senti diminuído
por as não ter. Cedo me foi ensinado e compreendi que a vida tem prioridades. E que
a família é, era entre todas, a primeira. O pouco que ganhava da minha magra jorna fazia falta para essas
prioridades e não havia sobras para mais luxos. Por isso, sozinho ou acompanhado, quase
sempre com algum livro a tiracolo, marchava pelos campos e perdia-me
horas a fio na companhia do vento até ao pôr do sol, quantas vezes a noite me rodeou
ainda longe de casa.
Havia veredas tão seguras como as estradas e nelas eu sabia onde estava cada obstáculo para contornar. Hoje nem com óculos graduados vejo já bem, mas naquele tempo, no meio do mato e no escuro das noites cerradas via a vereda, os contornos de tudo ao meu redor e os obstáculos. Mais do que uma boa visão aquilo era puro instinto. E que bem me sabia o sossego dos campos, a companhia das furtivas raposas, o monótono piar dos mochos ou o gorjeio dos melros e rouxinóis, o cantar dos grilos e dos ralos. Só não achava muita graça ao grito agourento das corujas que tinham o péssimo costume de soltar o seu gu-ru-ru algo sinistro quando me sentiam passar mesmo por baixo das pernadas e ramos onde espreitavam os movimentos de algum ratito no solo para o seu jantar.
O meu mundo foi quase sempre por aqui e nele fui infinitamente feliz. Por isso depois de tantos sóis já passados, venho ainda visitá-lo mesmo com as pernas a doer e os pés quase a arrastar. Ontem voltei de novo ao antigo povoado do Monte Velho, acompanhado pela minha inseparável companheira. Fomos demasiado longe mas apesar do cansaço, adorei. Enchi os olhos de beleza, a alma de harmonia e o coração de serenidade. Após demorada visita ao que resta dele, encetámos o regresso a casa acariciando as primeiras alvas e delicadas maias que começam já a despontar pelas giestas, pensando com alguma nostalgia:
- Será que irei voltar aqui mais
alguma vez?
Disse olá a uma bonita vitela que
assim que nos viu logo se encaminhou para nós pregando um monumental susto à minha
companheira que pensou que ia levar alguma marrada. Mas claro que não.
- Não tenhas medo, Maria! Tranquilizei-a…
A vitela pastoreava com mais duas ou três
irmãs, e, habituada a que os humanos lhes levem sempre algum miminho em forma de feno
ou granulado da ração, dirigiu-se a nós à espera do seu “presente”. Quando viu
que não lhe levávamos nada, seguiu o seu caminho e nós o nosso.
Esteve uma tarde esplêndida e no ar
pairam já por toda a parte os primeiros aromas primaveris. Aqueles cenários transportaram-me à minha meninice quando passei pelo carcomido toco do sobreiro que um raio
derrubou quase ao meu lado quando eu era pastor. Vencido pelos temporais, ainda
negro por dentro pela descarga incandescente que o derrubou, lá continua, indiferente ao
tempo e às nossas memórias. A seguir passámos pela Tapada da Lagem Alta, muito perto
da pedra onde eu pulava na brincadeira e me picou um lacrau num pé, enquanto a
minha mãe mondava milho um pouco mais abaixo. É tão bom recordar.
- Se puder vou voltar. Decidi.
José Coelho - 19.02.2021