sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

O irresistível apelo do passado...

Povoado Alto-Medieval do Monte Velho - Foto José Coelho

Já mais de uma vez pensei não voltar àqueles lugares, engendrando de mim para comigo plausíveis desculpas. O facto de estar a ficar menos ágil, de já não ter a leveza de quando era moço para subir e descer canchais ou saltar paredes, de não ser aconselhável afastar-me dos caminhos já tão pouco percorridos não vá dar-se a casualidade de um inesperado trambolhão que origine necessidade de socorro urgente a que a maior parte destes ermos são praticamente inacessíveis.

Talvez por essa sua inacessibilidade tenham sido desde sempre os meus lugares de eleição. Porque lá tudo quanto nos rodeia é puro. O cantar da passarada pelas manhãs e também pelo silêncio dos entardeceres. A brisa suave que nos acaricia o rosto nos dias amenos ou o vento agreste que nos greta os beiços nos dias frios. Tudo é genuíno. Não existe buraco, cancho ou lapa que eu não conheça ou não tenha visitado, por mais ermo e longínquos que estejam. Cresci e fiz-me moço a percorrer estas paisagens onde apanhei tantíssimos braçados de lenha de giesta seca para a mãe Florinda e também para a avó Amélia cozinharem as nossas comidas ao lume, porque o luxo dos fogareiros a petróleo ou a gás ainda não existia.

Nestes descampados me refugiei centos de vezes em busca de tranquilidade quando me senti inquieto. Por mil e um motivos. Pela aspereza da vida daquele tempo, pelos meus primeiros amores e desamores, mas também, quantas vezes, pelo meu indomável espírito que nunca entendeu render-se, fosse qual fosse o desafio. Por estas paragens existem imensos lugares onde não chega ninguém durante semanas, meses, anos até. E quando alguém lá tem de ir, desloca-se em transportes apropriados, tratores e outras alfaias agrícolas ou carrinhas 4x4, onde, além de se transportar, leva ainda palhas e rações para o gado que por lá pastoreia todo o ano. E sítios há onde só vão para fazer lenha no outono, ou para a apanha da cortiça no início do verão, sua principal fonte de rendimentos de nove em nove anos.

São quase todos estes lugares parte integrante da minha história de vida, a começar pela Cavalinha onde me acolheram sempre com tanto amor e carinho a avó Amélia e o avô/padrinho José que me deu o nome. Também o Muro de que tanto ouvi falar a vida toda porque foi onde nasceu e se criou a minha mãe mais os seus sete irmãos e irmãs, meus tios e tias maternos. Tantas peripécias suas contadas nos nossos serões à lareira! E o Matinho, onde o avô José era guardador de gados, onde a avó Amélia mondava searas com outras companhas. E para onde foram depois também transitando para trabalharem nos campos à medida que iam crescendo, todos os meus tios e tias.

Quantos lugares conheço por estes arredores? São quase incontáveis. A Cabeçuda, a Herdade dos Pombais, as Amendoeiras, o Batão, o Bravo a Bola da Cera, o Cavalo, os Aires, a Pereira, a Nave, a Anta, a Murta, a Meirinha, a Retorta, o Monte Velho, o Pereiro Velho, a Malhadinha Alta, a Herdade do Pereiro com a sua Fadagosa, a Torre, o Vale do Cano, o Cabeço de Seixo, os Pavios, o Chão Salgado, o Santo Amador, a Saragoça, a Defesa, as Cebolas, o Vale da Amoreira, as Águas, a Castinceira, a Bica, o Cabril, a Fonte Salgueiro, o Cabeço, o Cancho de Ruivo, os Carvalhos de Roque, a Lagem Alta e tantos, tantos outros que agora não me ocorrem…

Conheço-os de cor porque os percorri a pé, sozinho e acompanhado, inúmeras vezes. Nunca tive sequer uma bicicleta quando a maior parte dos meus amigos até já motorizadas tinham. Mas nunca me senti diminuído por as não ter. Cedo me foi ensinado e compreendi que a vida tem prioridades. E que a família é, era entre todas, a primeira. O pouco que ganhava da minha magra jorna fazia falta para essas prioridades e não havia sobras para mais luxos. Por isso, sozinho ou acompanhado, quase sempre com algum livro a tiracolo, marchava pelos campos e perdia-me horas a fio na companhia do vento até ao pôr do sol, quantas vezes a noite me rodeou ainda longe de casa.

Havia veredas tão seguras como as estradas e nelas eu sabia onde estava cada obstáculo para contornar. Hoje nem com óculos graduados vejo já bem, mas naquele tempo, no meio do mato e no escuro das noites cerradas via a vereda, os contornos de tudo ao meu redor e os obstáculos. Mais do que uma boa visão aquilo era puro instinto. E que bem me sabia o sossego dos campos, a companhia das furtivas raposas, o monótono piar dos mochos ou o gorjeio dos melros e rouxinóis, o cantar dos grilos e dos ralos. Só não achava muita graça ao grito agourento das corujas que tinham o péssimo costume de soltar o seu gu-ru-ru algo sinistro quando me sentiam passar mesmo por baixo das pernadas e ramos onde espreitavam os movimentos de algum ratito no solo para o seu jantar. 

O meu mundo foi quase sempre por aqui e nele fui infinitamente feliz. Por isso depois de tantos sóis já passados, venho ainda visitá-lo mesmo com as pernas a doer e os pés quase a arrastar. Ontem voltei de novo ao antigo povoado do Monte Velho, acompanhado pela minha inseparável companheira. Fomos demasiado longe mas apesar do cansaço, adorei. Enchi os olhos de beleza, a alma de harmonia e o coração de serenidade. Após demorada visita ao que resta dele, encetámos o regresso a casa acariciando as primeiras alvas e delicadas maias que começam já a despontar pelas giestas, pensando com alguma nostalgia:

- Será que irei voltar aqui mais alguma vez?

Disse olá a uma bonita vitela que assim que nos viu logo se encaminhou para nós pregando um monumental susto à minha companheira que pensou que ia levar alguma marrada. Mas claro que não.

- Não tenhas medo, Maria! Tranquilizei-a…

A vitela pastoreava com mais duas ou três irmãs, e, habituada a que os humanos lhes levem sempre algum miminho em forma de feno ou granulado da ração, dirigiu-se a nós à espera do seu “presente”. Quando viu que não lhe levávamos nada, seguiu o seu caminho e nós o nosso.

Esteve uma tarde esplêndida e no ar pairam já por toda a parte os primeiros aromas primaveris. Aqueles cenários transportaram-me à minha meninice quando passei pelo carcomido toco do sobreiro que um raio derrubou quase ao meu lado quando eu era pastor. Vencido pelos temporais, ainda negro por dentro pela descarga incandescente que o derrubou, lá continua, indiferente ao tempo e às nossas memórias. A seguir passámos pela Tapada da Lagem Alta, muito perto da pedra onde eu pulava na brincadeira e me picou um lacrau num pé, enquanto a minha mãe mondava milho um pouco mais abaixo. É tão bom recordar.

- Se puder vou voltar. Decidi.

José Coelho - 19.02.2021